09 dezembro 2014

Presença

O que está dentro é o que está fora.
O que está fora é o que está dentro.
E entre o que está dentro e o que está fora estou eu.
E entre o que está fora e o que está dentro estou eu.
Porque eu não estou fora nem dentro, nem dentro nem fora, mas sem mim nada estaria dentro, e sem mim nada estaria fora.

Eu sou a fronteira.

Eu sou a superfície.
Eu sou a barreira.
Sou o artífice.
Sou fronteira sem guarda.
Sou superfície rugosa e permeável.
Sou barreira dos sentidos que em mim esbarram para entender, com artifícios que só permitem ouvir, tocar, cheirar e ver.


Sei o que está fora e não conheço o que está dentro.
Sem mim sou dentro e fora.

Num lugar sem espaço, num instante sem tempo.

Jardim de pó

Trago no peito um temor que corrói a terra inteira.
Trago a terra inteira no peito, por não saber plantar sementes nem regar plantas.

Do pó me fiz, em pó me farei.
E entre o pó que me fez e o pó que eu faço, fica um castelo que não é de pó;
que é de pedra como as coisas que ficam.

Comi frutos que não plantei e guardei-lhes as sementes para um dia as plantar. Um dia, quando me pegarem pela mão e me ararem a terra inteira.
Então abrirei o peito e mostrarei ao Mundo que cá dentro levo um jardim.

E que no jardim do meu peito plantei um castelo que por fora é feito de pedra, mas por dentro é feito de ar.

Como as coisas que vão.

28 março 2014

Ilusão

A vida não é vida se não deixar de o ser.
A morte só existe naquilo que se transforma.
Para a morte dar vida não é necessária norma,
apenas a fortuna de na morte a vida ver.

27 julho 2012

Visita ao passado

Calcei as maos com o dourado
com que brilha a tua coroa
herdada, sofrida e nado
no mar que traz um passado
que viaja, salta e voa.

Foste bússula, astrolábio
num sorriso que não vi.
Por momentos fui mais sábio,
beijando um e outro lábio
almejei chegar a ti.

Fui mestre, sou aprendiz,
e em poesia difusa
passo da folha à raíz.
Ontem vi-te como actriz,
Hoje fiz-te minha musa.

30 março 2012

Onde as ruas passam a ter nome

A cada manhã uma esquina, a cada tarde um passeio, a cada noite um cruzamento...
A cada piscar de olhos uma rua se transforma numa avenida, um beco numa alameda, uma viela num boulevard...

Todas tinham a sua vida antes de mim.
Todas partilham a mesma vida, depois de mim.

26 março 2011

Se o neto I

De luz repleto encontro o tecto
Que o tronco faz e o braço verte
Embora fora outrora inerte
É hoje alvor jamais infecto

Sai da bruma que se faz pluma
E bate, sobe, cresce e voa
Porque não lhe pesa a coroa
Que um sorriso desarruma

Espero enquanto sob o manto
Claro e leve do teu encanto
Me deixo ir sem rumo certo

Na certeza de que a pobreza
Irá jamais sentar-se à mesa
Onde o coração jaz aberto

11 março 2011

Deturpar

Para a cama atrais histórias.
Da mesa levas memórias.

Doente por saber.
Eloquente para o dizer.
Sapiente por nada ter.
Efervescente mas sem viver.
Junto ao peito.
Outro leito.

Que as tuas estranhas entranhas me deixem de estranhar e me façam entranhar.

09 março 2011

Voragem

Bate, como quem não bate e acaricia.
Espera, como quem não espera e amargura.
Toca, como quem não toca e acompanha.

Uma fonte inesgotável de um destino inexorável que inunda a funda gruta onde o ser deixou de o ser.

Volta, como quem não volta mas se volta.
Vê, como quem não vê mas se revê.
Dá, como quem não dá mas aqui está.

08 março 2011

Às escuras

Respiraste o chão que era meu, entre degraus e escadas e muros e paredes.
Deste-me o ar inerte que juntei à solidão.
Levantaste a flor do meu cheiro.


Afoguei-me na dor do teu regaço.

17 fevereiro 2010

Purga

Devolveu.
Ocultou.
Revolveu.

Sentiu o Alfa. Respirou fundo e abraçou o Ómega.

A ventura dos dias traz-lhe a pena que com um sorriso carrega.

13 janeiro 2010

Prémio

Desapareceu de paradeiro incerto e encontrou-se na perenidade de uma sinapse.

Alheia.
Alheira.
À lareira...

13 janeiro 2009

Inspirar

Esperam-se enxurradas de vontade à beira de serenas perturbações.
Folheiam-se génios de outrora que se fizeram perenes balizas.

Num lançamento projectam-se ócios intemporais.

Num banco de mar recolhem-se espasmos cabais.

Porque do mar vêm.
Porque para o mar vão.

10 junho 2008

Tormenta

Um ósculo desviado do seu objecto captura num outro tu a essência da suspeita.
Invejas e passados beijam quem não passa.

Intercâmbios oníricos que num corpo desfazem o que uma vontade construiu.


Toldado por um intuito arrisca uma viagem sem volta.
O rumo é o seu.
O destino há-de sê-lo.

25 maio 2008

Quando?

Murmúrios que ressoam num coração aparentemente aberto não são suficientes para lhe dar a confiança que almeja.
Pede ao vento que lhe traga o adubo que agigantará o que se tornou incomensurável.

Ao encontro do que pode tocar, ultrapassa quem o pode sentir.

Estranhos do mesmo lado de uma trincheira que nenhum ajudou a cavar.

14 abril 2008

Berço

O ecoar das rochas nas ondas que estáticas recebem do pensamento o movimento embala-me.
A espuma traz à noite a claridade de uma fronha.

Salgados salpicos assaltam-me o âmago.

Até mim vem o mar que me leva aos teus lençóis.

Georeferenciação

Pela frente uma planura de montanhas.
Nas costas a tortuosa linha recta.

Lado a lado com a altaneira sobranceria que só o faz olhar para baixo.